Imune
A convenção social mais curiosa desta grande época em que vivemos é a
de que as opiniões religiosas devem ser respeitadas. Os efeitos
maléficos desta convenção devem ser evidentes para todos, mas os dois
maiores são: a) jogar um véu de santidade sobre idéias que violam
qualquer decência intelectual; b) tornar todo teólogo um libertino com
imunidades. O resultado disto é a espantosa lerdeza com que as idéias
realmente sólidas circulam pelo mundo. No minuto em que uma dessas
idéias põe a cabeça para fora, é inevitável que algum teólogo analfabeto
cairá sobre ela, tentando destruí-la. A maneira mais eficiente de
defendê-la, naturalmente, seria cair sobre o teólogo com uma clava,
porque a única defesa que funciona, na polêmica ou na guerra, é uma
ofensiva vigorosa. Mas isto seria considerado falta de modos pelas
convenções, e assim os teólogos continuam alegremente o seu assalto à
inteligência sem muita resistência, retardando desagradavelmente o
conhecimento.
Não há, na realidade, nada sobre opiniões religiosas que as autoriza a
mais respeito que quaisquer outras opiniões. Ao contrário, elas tendem a
ser ostensivamente cretinas. Se duvida, peça a qualquer devoto de suas
relações para pôr por escrito aquilo em que ele realmente acredita, e
veja o que será: “Eu, José da Silva, sob juramento, acredito que, ao
morrer, me tornarei um vertebrado sem substância, desprovido de peso,
altura ou massa, mas conservado todos os poderes intelectuais e
sensações corpóreas de um mamífero comum; e que, pelo crime e pecado de
ter beijado minha cunhada às escondidas, com má intenção, serei cozido
em ácido sulfúrico durante um bilhão de anos”. Outro exemplo “Eu, Maria
da Silva, carregando o medo do Inferno, afirmo e declaro solenemente que
foi uma atitude certa, justa, legal e decente por parte de Deus, ao ver
algumas criancinhas do santuário rindo da careca do Eliseu, mandar vir
uma ursa da floresta e instruí-la, incitá-la, induzi-la e comandá-la
para estraçalhar 42 delas”. Ou: “Eu, D Fulano de Tal, bispo da paróquia
de…, declaro pela minha honra como homem e como religioso acreditar que
Jonas engoliu a baleia”, ou vice-versa, se for o caso.
Não, não há nada ostensivamente digno a respeito de idéias
religiosas. Só conduzem a uma espécie curiosamente pueril e tediosa de
asnices. Na melhor das hipóteses, são compiladas dos metafísicos, ou
seja, de homens que devotam suas vidas a provas que duas vezes dois não
são sempre ou necessariamente quatro. Na pior das hipóteses, cheira a
espiritualismo ou a cartomancia. Nem há qualquer virtude visível nos
homens que as comercializam profissionalmente. Poucos teólogos sabem
alguma coisa que valha a pena, mesmo sobre teologia, e poucos deles são
honestos. Pode-se perdoar um comunista ou um coletor de impostos na
suposição de que há algum problema em suas glândulas endócrinas, e
receitar-lhe um inverno no Sul da França para curá-lo. Mas o teólogo
médio é um sujeito corado, robusto e bem alimentado, sem nenhuma
desculpa discernível em patologia. Ele dissemina a sua cantilena, não
inocentemente, como um filósofo, mas maliciosamente, como um político.
Num mundo bem organizado, ele estaria na enxada. Mas, no mundo em que
vivemos, temos de ouvir o que ele diz, não apenas educada e
reverentemente, mas babando de boca aberta.
Este texto atualíssimo foi publicado em 1930.
"O livro dos insultos" de H.L. Mencken, Seleção, tradução e posfácio de Ruy Castro. Extraído de "A Mencken Chrestomathy"
"O livro dos insultos" de H.L. Mencken, Seleção, tradução e posfácio de Ruy Castro. Extraído de "A Mencken Chrestomathy"